7.20.2004

Lembro-me de ser mais novo e ouvir o meu pai falar de um restaurante de nome Galeto, onde se podia comer bem e até às muitas pela noite a dentro. Na altura, por viver longe de Lisboa e por nem sequer sair à noite (creio que os meus pais me mandavam para a cama, conjuntamente com o meu irmão mais velho, por volta das 21h), nunca prestava muita atenção aos nomes, excepto quando eram invulgares – o que era o caso deste -, e imaginava na minha cabeça possíveis ficções de onde seriam e como seriam esses lugares.
Não foi a primeira vez que entrei no dito local mas foi a primeira vez que o usei como lugar para pedir uma sandes, beber uma imperial e fazer tempo na companhia de uma boa conversa. Cheguei a casa um pouco mais tarde do que esperava, com isso perdi algumas horas de sono. O sono foi bem perdido, nem dei por ele durante a manhã, tive finalmente  a oportunidade de viver uma das histórias que o meu pai contava e me maravilhava quando era pequeno. Agora só falta ir a Angola….um dia, talvez, como tudo. Uma coisa de cada vez.
Se realizarmos todos os sonhos de uma só vez o que é que nos sobra?
 
PS: enquanto procurava saber se escrevia correctamente o nome Galeto deparei-me com este texto... no mínimo curioso:
 
""Lisboa tem os seus segredos à noite. Tem-nos de dia e à tardinha. Mas é de noite que os segredos são mágicos e são trágicos. Nesta labuta de manter a Internet a funcionar e de andar à volta dos computadores durante a noite sou, também, um dos personagens que habitam a noite de Lisboa. Ao lado das prostitutas e dos chulos, dos empregados do Galeto, dos bandos de africanos que se juntam à volta das roulottes de bifanas e caldo verde às quatro da manhã, dos apaixonados sem sono que calcorreiam a insónia nos passeios de calçada portuguesa da cidade, dos polícias desinteressados e dos guarda-nocturnos que já viram quase tudo, dos amantes dos bichos a salvarem um gatinho preso no motor de um carro às 3 da manhã depois da saída do cinema, dos que procuram a companhia no copo de cerveja do próximo bar, dos que desesperados da solidão dão tudo por ouvir a voz dos homens, dos amantes que prolongam mais um pouco a rua com medo de ir para casa não vá o encanto quebrar-se, daqueles que levados pela fome da luz e de um bife procuram um qualquer restaurante às 5 da manhã e, por fim, dos arrumadores de  carros que aborrecem, ajudam, perturbam e nos enchem a cara da miséria que carregam. Pois foi numa dessas noites de trabalho, aborrecido dos computadores,  cansado de trabalhar de noite e saudoso dos braços quentes de mulher que me  esperariam em casa que saí à rua por um batido de iogurte com frutas e uma tosta mista ali mesmo no restaurante galeto a dois quarteirões do sítio onde trabalho. Chovia uma espécie de morrinha que não era bem água. Parecia um qualquer líquido viscoso que passava além dos casacos e falava do trágico que tem a noite. Começa o inverno e os sem abrigo gritam-me em silêncio o conforto que tenho em minha casa. A luz dos computadores que durante a noite vigio, deixa nos meus olhos de quarentão, uma impressão bruxuleante, a luz mortiça e cansada dos faróis velhos do meu carro velho, faz uma auréola dentro da chuva que cai. Desloco-me dois quarteirões de carro por medo da chuva e do mal que ela me grita, do incómodo que é saber que a noite está lá e incomoda. Meio entorpecido por estes pensamentos, a tentar perceber qual é o meu lugar na noite, como tento perceber qual é o meu lugar na vida. E sem vontade nenhuma de descer à terra, do inferno onde habito que se situa três metros acima do chão, vou passando semáforos e quarteirões na senda do restaurante que, penso, me confortará o estômago e o estado de espírito. Debaixo daquela chuvinha que não chega a sê-lo, mesmo à porta do restaurante a tentar estacionar carros em troca de uma moeda que lhe mitigue a miséria, vejo-a. Debaixo de um guarda-chuva gritantemente vermelho, parece que pretende personificar a noite toda e a decadência que fugir dos outros traz. Aquela personagem esguia, postada no meio da rua a mostrar-se qual gigante adamastor, qual mostrengo que está no fundo da noite a ensinar-me que o risco entre este meu lado do mundo e o lado onde ela vive é ténue e arriscado. Conheço-a há mais de um ano e a sua presença é sempre a minha aflição. Não lhe consigo adivinhar a idade. Rapariga no fundo dos olhos, mulher na aparência física, velha na história que o seu aspecto grita. Então tinha o cabelo comprido e lutava pelos melhores lugares a estacionar carros. Encontrava-a ao fim da tarde e parecia-me que vinha de longe e para longe. A sua mobilidade era notória. Agora vive dentro de um Renault 5 vermelho em frente ao restaurante que me acolhe a fome até às três da manhã como se arrastar-se mais de cem metros fosse uma tarefa impossível. Agora não sei se tem cabelo escondido sob um chapéu horrível. Arruma carros numa expressão sem vontade, sob uma qualquer história de drogas (?) ou de miséria precoce que não me é dado nem desejado entender. Que susto, que medo, que pavor. Corro atrás dela para lhe dar uma moeda. Ela já me conhece e sabe do meu olhar inquiridor e da certeza de uns trocos na algibeira das calças. Seremos  cúmplices, somos personagens da noite de Lisboa."
 
Jaime, 12 de Dezembro de 2000"

Sem comentários: